Por muitos anos, Gilson dos Santos Machado, hoje com 48 anos, viveu sob o peso do alcoolismo, da dependência química e das consequências que eles trouxeram para sua vida. “Sou alcoólatra e adicto em recuperação. Estou sóbrio há 15 anos”, conta.
Mas essa trajetória de sobriedade esteve longe de ser linear. Marcado por recaídas e frustrações, Gilson se viu diversas vezes no fundo do poço — abandonou o filho ainda pequeno, interrompeu os estudos, não conseguia terminar nada do que começava. “Estudei 15 anos e só tenho a 5ª série. Sempre desisti de tudo que começava.”
A dependência ainda o levou à compulsão alimentar. “Quando parei com o uso de álcool e drogas, eu virei compulsivo por comida. Eu comia sem parar.” Em sua pior fase, chegou a pesar 159,8 kg. A situação atingiu um limite em uma viagem à Bahia, quando, após não conseguir manter relações com a esposa por causa do excesso de peso, foi tomar banho e viveu um episódio traumático.
“Deitei na banheira, enchi de água e espuma demais. Começou a me sufocar, e eu não conseguia sair. O peso não deixava. Minha esposa dormindo, e eu sufocando.” Esse momento, segundo ele, foi a virada. “Aquilo foi a gota d’água. Resolvi mudar.”
Os primeiros passos, entre dores e superação
Gilson começou a caminhar, mesmo sentindo fortes dores nas pernas. Buscou ajuda médica, mas ouviu que seu caso era para cirurgia. “Chorei aquele dia. Pensei: eu vou tentar, preciso me salvar.” Ingressou em uma academia e o treinador passou a abrir as portas para ele às 5h da manhã. A frequência aumentou e a transformação veio em metas: 150 kg, 140 kg, 130 kg… Até que chegou aos 99 kg. “E não caminhava mais. Estava correndo já.”
Mesmo com a evolução, novos abalos vieram. Em 2024, após perder bens materiais e ter que deixar sua casa para voltar a morar com a mãe, Gilson quase recaiu. “Isso mexeu comigo. Quase tive uma recaída. Precisava de algo mais para me manter sóbrio, desfocar minha cabeça do álcool e da droga.” Foi então que seus professores notaram a tristeza. “Eles perceberam que eu estava mal, não estava correndo com alegria, e conversaram comigo.”
A decisão pela maratona e a faixa no km 38
A conversa com os treinadores foi o empurrão que faltava para assumir um novo compromisso. “Resolvi fazer 42,195 km em Sorocaba. Uma corrida plana. Eu pensei: preciso provar pra mim que sou capaz. Tinha perdido minha confiança.”
Ele recebeu a planilha de treinos, passou a ser acompanhado de perto e investiu em um novo par de tênis. “Meu tênis estava judiado. Falei: ‘ele não vai aguentar 42 km’. Juntei minhas moedas, dei de entrada e parcelei um tênis. O dinheiro que eu gastava em bebidas e drogas, eu investi em um tênis bom pra mim.”
Antes da maratona, preparou uma faixa especial. “Pedi pra uma pessoa da equipe segurar pra mim no km 38. Eu tenho que chegar até lá para pegar esta faixa.” Ela esperou por 3h30. Quando Gilson pegou a faixa, ganhou gás.
“Abri a faixa e corri o resto do percurso com ela aberta: ‘TROQUEI O ÁLCOOL E AS DROGAS POR UM PAR DE TÊNIS E VIREI MARATONISTA’. Essa era a frase.”
Corrida, disciplina e dignidade
Com a maratona completa, Gilson encontrou uma nova identidade. A corrida não era apenas um esporte, mas uma metáfora do que ele sempre buscou: chegar até o fim. “A corrida de rua me mostrou que na corrida existe a largada e a chegada. E só chega quem luta.”
Ele atribui grande parte da sua força à prática esportiva e aos encontros dos Alcoólicos Anônimos, dos quais participa. “Se não fosse meu tênis, minha planilha e minha força de vontade, talvez eu não estivesse aqui contando esta história”
A família, o passado e a reconstrução
As marcas do vício também atingiram quem estava ao seu redor. “Minha ex-mulher sofreu bastante. Abandonei meu filho com 3 anos de idade.” Hoje, o filho está crescido, trabalha e fala até em casamento. Sua atual esposa abriu mão de conforto para viver com ele. “Saiu da casa dela que era enorme para morar comigo em 2 cômodos e 1 banheiro num bairro distante.”
A mãe, que já o viu dormir na rua e mentir sobre o paradeiro, também sofreu. “Ela me viu usar drogas e, pra ela, foi o dia mais triste da vida dela.” Hoje, ele acredita que todos o veem com orgulho. “Minha esposa até declaração de amor fez pra mim em uma festa. Eles não vão nas corridas, mas sabem que faz bem pra mim. Me deixam treinar e correr tranquilamente. Sempre falam ‘vai com Deus e boa sorte’.”
SP City Marathon: a corrida da vida
Uma das experiências mais emocionantes de Gilson aconteceu na SP City Marathon. “Foi uma prova incrível pra mim. Muito desafiadora e emocionante.” Ele passou por lugares que marcaram sua juventude. “Passei por lugares que andei bêbado e drogado. Fui músico, morei em São Paulo em 1995, gravei um CD de pagode.”
Durante a corrida, viu moradores de rua dormindo com papelões. “Pensava: olha eu aí. Poderia ser eu deitado ali. A vontade era de ir até lá e tirar aquelas pessoas dali, mostrar que existe uma vida melhor.” Chorou no percurso e celebrou na chegada com desconhecidos. “Fechou com chave de ouro. Pretendo voltar novamente, se Deus quiser. Quero sentir essa emoção novamente. Ela é única.”
Um novo horizonte: 65 km à frente
Gilson não parou. Agora, projeta sua primeira ultramaratona. “Já estou trabalhando na Ultramaratona 65 km. Ano que vem já vou fazer 50 km, se Deus me der a oportunidade, e ele vai.” A ideia surgiu em uma conversa com os professores. “‘Gilsão, vamos sair de Tietê até Piracicaba correndo?’. Topei na hora. Só nessa já dá quase 50 km”, conta rindo.
Gilson dos Santos Machado percorreu um caminho de volta à vida. Dos vícios à obesidade extrema, do abandono ao acolhimento familiar, ele encontrou na corrida um novo sentido. Hoje, mais do que cruzar linhas de chegada, ele corre para manter-se de pé, lúcido e presente.
A cada quilômetro vencido, reforça a frase que estampou sua faixa e transformou sua existência: “Troquei o álcool e as drogas por um par de tênis e virei maratonista”.